A manifestação convocada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e realizada no domingo (25) na avenida Paulista, em São Paulo, mandou ao Supremo Tribunal Federal (STF), ao governo Lula e ao Congresso o recado de que uma parcela importante da direita brasileira, mesmo sob o encalço das muitas medidas de cerceamento de liberdades que sofreu nos últimos anos, está disposta a continuar se manifestando nas ruas.
A mensagem da resiliência na luta política, transmitida por meio da presença massiva do povo, foi reiterada nos discursos do evento. Em uma das primeiras falas, o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) afirmou: "O nosso inimigo ficou 12 anos tentando a Presidência da República, e conseguiu depois de 12 anos. Nós não temos o direito de ter menos persistência do que o nosso inimigo".
Pessoas vestidas de verde e amarelo lotaram a avenida para a manifestação, que foi convocada por Bolsonaro no dia 12 de fevereiro, quatro dias após o ex-presidente e seus aliados serem alvo da investigação Tempus Veritatis, da Polícia Federal. Segundo dados divulgados pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, cerca de 750 mil pessoas estiveram na Paulista.
Para o cientista político Adriano Cerqueira, professor do Ibmec-BH e da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), o evento do domingo deu dois recados principais ao mundo político: "a grande capacidade de mobilização política que a direita tem hoje, principalmente aquela que tem em Bolsonaro sua principal referência política"; e o forte rechaço dos cristãos brasileiros ao posicionamento de Lula contra Israel, num ambiente em que a segunda bandeira mais levantada depois da brasileira foi a israelense.
"Em poucos dias, Bolsonaro soube mobilizar milhares de pessoas, talvez até próximo de um milhão, na Paulista. E deu um recado ao meio político para as eleições municipais deste ano e para as eleições gerais de daqui a dois anos: ele tem, sim, o poder de influenciar e de transferir votos", diz Cerqueira.
Bolsonaro, que chorou em vários momentos durante o evento, rebateu as acusações de que teria tentado um golpe em seu discurso. "Golpe é tanque na rua, nada disso foi feito no Brasil", afirmou o ex-presidente. Destacando que a base da acusação é uma minuta de decreto de estado de defesa, ele acrescentou: "Golpe usando a Constituição? Tenha santa paciência!"
O ex-presidente também pediu a pacificação do país e a anistia dos presos do 8 de janeiro: "Nós já anistiamos no passado quem fez barbaridades no Brasil. Agora nós pedimos a todos os 513 deputados e 81 senadores um projeto de anistia para que seja feita justiça no Brasil". Ele disse que quem praticou vandalismo em 8 de janeiro de 2023 deve pagar, mas as penas que estão sendo impostas "fogem ao mínimo da razoabilidade".
O discurso mais contundente foi o do pastor Silas Malafaia, que citou o episódio do falecimento de Cleriston Pereira da Cunha. "O procurador pediu a liberação dele e Alexandre de Moraes não deu. Ele morreu. O sangue de Cleriston está na mão de Alexandre de Moraes e ele vai dar conta a Deus", disse Malafaia.
O pastor também comparou a situação do Brasil à de outros países para destacar a crise vivida pela democracia brasileira. "Pensem, deputados, senadores e governadores. Parem para pensar. Em um Estado Democrático de Direito, como Estados Unidos, Alemanha, França, Itália e vai por aí afora, ninguém tem medo de falar em manifestação. Ninguém tem medo de expor seu pensamento nas redes sociais. Olha o que está acontecendo no Brasil. Deputado, senador e brasileiros com medo de falar. Que democracia é essa?", questionou.
Malafaia afirmou ainda que o povo “é o supremo poder dessa nação” e, citando a Bíblia, acrescentou: "não temerei o que me possa fazer o homem”. Ao final, convidou os presentes a cantarem um trecho do hino da Independência do Brasil.
Além de recado político, ato na Paulista reforça campanha por anistia ou impeachment
Para o sociólogo e analista político Eduardo Matos de Alencar, a manifestação foi importante como "grande demonstração de força às vésperas das eleições municipais". "É um recado importante para qualquer pessoa que pensa no bolsonarismo como força decadente ou no Bolsonaro como uma figura que não vai importar estar do lado em termos de resultado eleitoral", afirma.
Rodrigo Marinho, mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (Unifor), diz que a manifestação também pode ser um tijolo importante na construção de um eventual impeachment do ministro Alexandre de Moraes. "Por óbvio, quanto menos popular for o Supremo, mais popular são as medidas contra o Supremo. Acredito que tanto o pedido de impeachment do Alexandre de Moraes como o de Lula tendem a ganhar mais força", afirma.
Além disso, segundo Marinho, Bolsonaro deixou claro o recado sobre a importância de levar ao Congresso o tema da anistia. "Isso deve ser destacado durante o Congresso na próxima semana. Existem várias batalhas a serem vencidas, e essa é só mais uma de tantas que precisam ser vencidas para que voltemos à normalidade institucional. Talvez a manifestação de hoje seja o primeiro passo para o fim dos abusos processuais tão claros cometidos contra o Bolsonaro e contra diversas outras pessoas, muitas delas sem prerrogativa de foro, como é o caso do próprio Bolsonaro", comenta.
Para Alencar, do ponto de vista político-institucional, a manifestação não deve ter resultado imediato, já que Bolsonaro "não demonstrou disposição para o enfrentamento direto dos seus algozes" e, além disso, não houve disposição para canalizar a energia popular em torno de debates como a reforma do Judiciário e o controle dos poderes excessivos do STF.
"Sem isso, é muito difícil acreditar que a Suprema Corte, com todos os sinais que ela tem dado até agora, vai refrear de qualquer forma os abusos que têm sido cometidos. É mais provável que Bolsonaro e seus apoiadores continuem sendo acossados por esse lawfare. O processo vai se estender até que os juízes considerem que eles têm elementos suficientes para compor uma peça, por mais juridicamente inconsistente que ela seja. Em algum momento, ela vai virar objeto de inquérito que deve resultar em condenação dos envolvidos. E, isso aí, uma manifestação como essa não deve afetar de forma alguma."
Repercussão internacional
A imprensa internacional repercutiu no seu noticiário o ato convocado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro em São Paulo no domingo (25/2).
"Última resistência ou retorno político?", perguntou o jornal francês Le Monde em uma reportagem escrita por um correspondente no Brasil.
"Encurralado por investigações judiciais e gravemente ameaçado de prisão, Jair Bolsonaro assumiu a liderança, no domingo, 25 de fevereiro, em uma grande manifestação de apoio a si mesmo."
O jornal disse que havia um grande número de manifestantes no ato, mas destacou o comedimento de muitos dos presentes.
"A multidão estava lá, é claro. Mas estamos longe do entusiasmo das mobilizações anteriores. Sob um lindo sol, os rostos permaneceram fechados, e as palavras eram controladas. O medo de serem presos por convocarem um golpe é real entre esses bolsonaristas que agora seguram seus ataques contra os odiados juízes do Supremo Tribunal Federal."
O correspondente do Le Monde também relatou que as bandeiras de Israel na multidão eram "quase tão numerosas quanto as do Brasil".
"No final deste dia, Bolsonaro terá demonstrado a sua capacidade de mobilização e a resiliência da sua popularidade junto da sua base. Politicamente, ele terá, portanto, ganho alguns pontos. Mas no plano jurídico, o assunto está longe de ser ouvido", escreveu o jornal, enumerando alguns dos processos aos quais Bolsonaro responde no momento.
"Já condenado a oito anos de inelegibilidade pelos seus ataques ao sistema de votação eletrônica do Brasil, poderá o 'capitão' ver a sua cavalgada política terminar atrás das grades? Na extrema direita, alguns já parecem estar preparando a sucessão e imaginando um bolsonarismo sem Bolsonaro. O candidato mais sério continua sendo o ex-ministro e atual governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas. Presente no Paulista, ele prestou homenagem ao 'amigo' e ex-presidente", diz a reportagem.
Outro jornal francês que noticiou a manifestação na avenida Paulista foi o Le Figaro.
"Apesar destes escândalos, Jair Bolsonaro ainda é considerado o líder da oposição e continua adorado pelos seus apoiantes. Mesmo tendo sido declarado inelegível até 2030 no ano passado por desinformação, o ex-presidente pretende usar sua influência para eleger aliados durante as eleições municipais de outubro, em um país ainda muito polarizado."
O espanhol El País disse que "o bolsonarismo demonstrou orgulho, força e apoio ao líder nas ruas após um ano de discrição".
"O ex-presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, 68 anos, conseguiu este domingo em São Paulo o grande evento que procurava em resposta à acusação de que planejou um golpe de Estado juntamente com vários generais que eram ministros", escreveu o jornal.
"Cerca de 185 mil fiéis, segundo uma contagem de acadêmicos, apoiaram-no juntamente com quatro governadores aliados e dezenas de parlamentares. Três dias depois de permanecer em silêncio ao ser questionado pela polícia sobre a suposta trama golpista, Bolsonaro queria uma foto de multidão para rebater o que considera uma perseguição judicial."
O jornal destacou a fala de Bolsonaro de que não havia "tanques nas ruas" e que, portanto, não houve tentativa de golpe. Segundo o jornal, Bolsonaro "ignorou que no século 21 os golpes são perpetrados distorcendo as leis".
O El País disse que o ex-presidente está "cada vez mais encurralado pela justiça".
"Os oito casos investigados pelo Supremo têm um pouco de tudo: divulgação de notícias falsas, posse de joias valiosas que eram presentes de Estado e má gestão da covid-19."
Na imprensa britânica, o ato de Bolsonaro foi noticiado por Daily Mail, Independent e Guardian.
O Daily Mail enumerou as acusações contra Bolsonaro, mas concluiu: "Mesmo assim, Bolsonaro ainda é considerado o líder da oposição e é adorado por seus fervorosos apoiadores".
"O protesto de domingo à tarde é visto como um teste decisivo ao seu apoio antes das eleições municipais de outubro, nas quais se espera que a sua influência desempenhe um papel fundamental na nação ainda polarizada."
O Independent destacou que Bolsonaro ainda tem muitos apoiadores no Brasil, apesar das investigações policiais contra ele.
"O evento mostrou que a mensagem de Bolsonaro ainda ressoa entre muitos brasileiros, alguns dos quais evidentemente são a favor de qualquer tentativa de golpe que o coloque no poder. Um homem desfilou com chapéu militar e gritou: 'Brasil, nação, salve nossas forças. As Forças Armadas não dormiram!'", escreveu o Independent.
O Guardian destacou na sua manchete: "Dezenas de milhares de pessoas participam de manifestação em apoio ao ex-presidente do Brasil".
O ato bolsonarista foi destaque também no Times of Israel, jornal que fez críticas a Lula na semana passada pela fala em que o presidente traça paralelos entre a ação de Israel em Gaza e o Holocausto nazista.
O título do jornal diz: "Em refutação a Lula, o ex-líder do Brasil Bolsonaro agita a bandeira de Israel em comício em massa".
"O ex-presidente foi fortemente pró-Israel durante o seu mandato. Em uma das suas primeiras medidas depois de vencer as eleições presidenciais de 2018, Bolsonaro prometeu seguir o exemplo do seu modelo político, o então presidente dos EUA, Donald Trump, e transferir a embaixada do Brasil em Israel de Tel Aviv para Jerusalém."
Veículos alemães — como o Sueddeutsche Zeitung e o Spiegel — também noticiaram o ato na avenida Paulista.